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Caso Aranha: A hipocrisia da empatia seletiva – o rigor máximo e a severidade aos outros (diferentes), as garantias e a compreensão aos meus (semelhantes)

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Há alguns anos, fiz um texto sobre a hipocrisia da total dissonância entre a tratativa do senso comum para com a menina que proferiu insultos racistas ao goleiro Aranha, do Santos, compreendendo sua atitude e achando tudo um grande exagero, e a gana raivosa de comemorar o linchamento de suspeitos de crime, nas ruas do Brasil, quando houve uma onda de casos semelhantes. Segue:

A indignação do goleiro Aranha após sofrer insultos racistas

É interessante esse fenômeno que está tomando as timelines das redes sociais Brasil afora e as conversas nas praças: empatia, compaixão e até mesmo coletiva à tal Patrícia, aquela que incorreu em injúria racial ao atleta do Santos – indignados com o enfoque midiático, o “justiceirismo” de alguns imbecis, a condenação prévia e até mesmo a estereotipização de torcedores.

Até aí tudo bem, compreensível. A menina deve ser devidamente julgada, sendo respeitadas suas garantias e não deve passar por linchamento popular (seja moral, virtual ou físico). Que apenas responda por seus atos da maneira devida, sendo seguido o devido processo legal – como deveria ser com qualquer um. Deveria! Para muitos isso é mera utopia.

As ofensas racistas a Aranha não se limitaram a Patrícia, alguns chegaram a imitar macacos

O que impressiona é que nem 1% de toda essa indignação coletiva existiu no tocante aos linchados e presos a postes de maneira degradante (torturados, com orelha decepada, sem roupa) de alguns meses atrás. Triste realidade impulsionada por uma jornalista irresponsável que tachou tudo como “compreensível”. Pior, boa parte apoiou. Isso sem contar os que sofrem com a agressividade policial gratuita quotidianamente.

A exposição desses marginais (marginais mesmo, no sentido literal, de viverem às margens da sociedade), “coincidentemente” negros, a uma situação muito mais humilhante não só em um local público, como nos telejornais, sem qualquer menção a uma eventual prova cabal do cometimento de algum crime, é menos indignante que a de uma loirinha, bem vestida, com – nesse caso sim – prova concreta (quer prova mais evidente que a do vídeo em que chama um negro de “macaco” com todas as letras e repetidamente? Com a única intenção de atingi-lo diretamente?) de que teria cometido um crime.

Âncoras que defenderam os linchadores, que acabaram presos por tráfico

Pior, nem era preciso provar alguma coisa naquele caso em específico dos linchamentos, o que é paradigma para os demais análogos. A vítima já era a “culpada” por antecedência. A supramencionada jornalista nem quis ir a fundo na possível responsabilidade do “marginalzinho preso ao poste” por algum ato, nem a aborda – seu crime já era pressuposto, não precisava ser discutido de forma imparcial e responsável. Virou até secundário, nem mencionado foi. O clamor pela compreensão e empatia que se tem hoje à Patrícia, àquele(s) passou longe. O que imperou foi o fígado, a sede por sangue. A vingança era mais importante que o próprio eventual crime.

Mas, é claro, é sempre mais fácil ter compaixão quando quem julga se coloca no lugar da pessoa (empatia!). E mais fácil querer o mal do diferente, já desumanizado. Quando brado por rigor é sempre ao outro, porque se pode acontecer comigo, ou com os meus, já penso duas vezes, certo? “Vai quê”, né! Aí que está o ponto de inflexão: jamais seríamos confundidos com um bandido e linchados, de forma degradante, sem alguma resistência. “Melhor”, dificilmente seríamos abordados com agressividade em situação semelhante, sob qualquer hipótese. Isso “não nos pertence”, não somos nós os condenados previamente por estereótipo. Não nos “esculacham” e “baculejam” primeiro, para depois perguntar.

Já quanto a uma injúria racial, cometida por uma garota loira, bem vestida, “de família”, em um estádio de futebol, torcendo para o seu time, é bem mais fácil a compaixão. “Já fomos todos Patrícia”! A vítima até, pasmem, se inverte. Aranha passa a ter obrigação de desculpá-la, o “vilão” que foi inferiorizado pela cor de sua pele – chegaram ao ponto de justificarem por ele ter feito cera. Sim, vilanizaram a vítima! E, como falado acima, pior: suposto crime esse foi comprovado por vídeo, ou seja, enseja o devido julgamento. Não é mera suposição, o ato aconteceu, é fato!

Ademais, o crime é à honra subjetiva do negro, algo que nós (a maioria dos que lerão isto) jamais entenderemos, pois não sentimos na pele. É algo que só atinge o “outro”. Aí é bem mais fácil de relevar e diminuir. “Nem teve a intenção de agredir”, “deve ser de família, foi um deslize”, “foi no calor do momento”, “ela nem deve ser racista”, “tamanho alarde para uma coisa tão pequena”, “coitada, se arrependeu!”, “o mala do Aranha nem pra desculpá-la”. Argumentos esses, curiosamente, nunca utilizados quando o autor é o “outro”, já que não conseguimos nos colocar no lugar dele. Aí vira “não deve ser santo”, “o motivo não importa, ele escolheu delinquir”, “se fez, que pague”, “se relevar agora, ele volta a cometer crime”, “o coitadinho agora tá arrependido?”, “tá com pena, leva pra casa!”, “se está defendendo, experimenta se colocar no lugar da vítima!”.

E isso quando quem opina sequer tem conhecimento de alguma prova de autoria (já pressupõem o crime), quanto mais quando ela existe e tem força. Quando os outros são os autores, “a punição tem que ser rigorosa e exemplar”, já que “infelizmente logo estarão nas ruas”, “lamentavelmente responderão em liberdade” e “deviam levar uma surra pra aprender, então”. Por último, a mais brilhante, “a pena de morte resolveria”. Para o outro (o diferente), sempre resolve! A ele sempre o rigor máximo, já aos meus (aos semelhantes) as garantias. Ah, a hipocrisia!

Por Elísio Felton Getulino

Pseudônimo de mais um livre pensador, que gosta de estudar bastante sobre os temas antes de opinar a respeito. Multitarefas, interessado em todos os assuntos. Preza sempre pela razão, pelo conhecimento e pela opinião responsável. Overthinker como meio de vida, curiosidade como ideário.

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