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O histórico verão americano de 1967: como Ali uniu Direitos Civis (MLK), revoltas sociais e hippies contra a Guerra e a favor do movimento negro

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Há exatos 53 anos, os EUA viviam um dos verões mais históricos de toda sua existência, com reflexos mundiais. Em 20 de junho de 1967, o maior atleta de todos os tempos, Muhammad Ali, foi condenado em Houston a 5 anos de cadeia por recusar alistamento para as Forças Armadas, em um júri composto exclusivamente por pessoas brancas. Isso tudo em meio a um caldeirão que envolvia Guerra do Vietnã, Civil Rights Movement, Race Riots, Summer of Love, The Long Hot Summer… Todos esses eventos se ligavam e encontram paralelo direto com os atuais protestos por George Floyd.

Manchete principal do The New York Times em 21 de junho de 1967

No fervor da luta do movimento negro por Direitos Civis e no auge do recrutramento de jovens à Guerra do Vietnã, toda uma geração foi forçada à politização. Vivemos hoje um momento histórico análogo de revoltas contra o racismo, tal qual aquele longo verão de 1967. Por vias distintas, a luta foi travada nas ruas americanas.

Em abril, inspirado pela franqueza de Muhammad Ali, Martin Luther King convocou passeatas de centenas de milhares, chocou o Partido Democrata e a imprensa ao envolver o Civil Rights Movement nos apelos pelo fim da guerra, perdendo relevante apoio dos brancos – a maior parte das baixas no Vietnã era formada por minorias e desprivilegiados, especialmente jovens pretos (apesar da proporção muito inferior na população americana), enquanto os influentes conseguiam escapar do recrutamento – o lema “if you’ve got the dough, you don’t have to go” estava na boca do povo. 200 mil marcharam ao seu lado, enquanto jovens queimavam seu cartão de alistamento em protesto. Foi o começo do real movimento contra a Guerra do Vietnã.

King participando de marcha contra a Guerra, do Central Park até a sede das Nações Unidas

No mesmo mês de junho, outro movimento surgia simultaneamente, também em combate à guerra, mas com modus operandi distinto, conseguindo atrair inclusive soldados retornados: o Summer of Love. O fenômeno social hippie atraiu mais de 100 mil jovens, que se reuniram em San Francisco, propagando ideal pacifista e free-love, enquanto ouviam shows de psychedelic rock. As férias de meio do ano auxiliaram para juntar inúmeros universitários ao evento.

Show de Jefferson Airplane durante o Summer of Love

Simultaneamente, um movimento completamente distinto explodiu por todo o país: os race riots. Se em San Francisco, o amor enchia os corações dos jovens privilegiados, que espalhavam paz por meio de rock’n’roll; em Newark, Buffalo, Detroit, Milwaukee, a indignação tomava conta dos jovens negros, extravasada por meio de revoltas.

Detroit Riots e a indignação dos afroamericanos

A populaçao preta, que recém havia superado as leis segregacionistas de Jim Crow após muita luta, sofria diretamente com a herança recentíssima: desemprego institucionalizado, abuso policial, discriminação em escolas, péssimas moradias e bairros dessegregados… O barril de pólvora explodiu e revoltas tomaram as cidades. Foram as maiores da história americana até as de Los Angeles em 1992, também motivadas por discriminação racial, tais qual a de George Floyd. Legado segregacionista que ainda ecoa!

Soldado da Guarda Nacional, enquanto bombeiros combatem as chamas em Detroit

Iniciando justamente em junho do mesmo ano, tal quais os demais eventos supracitados, uma onda de violantos protestos eclodiram em mais de 150 cidades, durante um caloroso verão. O rastro de destruição foi enorme. Só em Detroit, 83 pessoas morreram, milhares restaram feridas e mais de 10 milhões de dólares em danos materiais. Bairros inteiros foram egolidos por chamas. Nas notícias, transmissões de vídeo da Guerra do Vietnã eram intercaladas com cenas de caos completo nas ruas americanas.

Discurso de King três semanas após os race riots de Detroit na Southern Christian Leadership Conference de Atlanta.

O próprio Martin Luther King Jr., sempre pintado pelos conservadores surfistas de popularidade de hoje em dia como um pacifista inveterado, explicou o movimento como uma resistência preta à “reação branca” pelo recente fim da segregação legal – “eles causaram a escuridão, eles criaram a discriminação, eles criaram as favelas, eles perpetuaram o desemprego, a ignorância e a pobreza; é inquestionável que negros cometeram crimes, mas são crimes derivados, criados por um crime maior da sociedade branca”.

Esse discurso, proferido três semanas após o fim da pior das revoltas raciais que causaria histeria entre os oportunistas, como o MBL de Fernando Holiday, que utilizam Dr. King como um símbolo conservador, a despeito do mesmo ter apoiado a social-democracia. Assim concluiu: “uma revolta é a linguagem de quem não é ouvido; e o que a America falhou em ouvir? O aviso de que promessa de liberdade e de justiça não foi cumprida e que a sociedade branca está mais preocupada com sua própria tranquilidade e manutenção do status quo, do que com justiça, equidade e humanidade“.

Perfil símbolo do negacionismo histórico propagando a mentira de MLK conservador

Muhammad Ali foi voz decisiva, em um momento em que poucos tinham coragem de contestar uma guerra dita como patriótica, em um país nacionalista como os EUA. Foi crucial para motivar a movimentação de Martin Luther King Jr. e de toda sociedade preta. Menos de um ano depois, MLK seria assassinado, criando uma nova onda de violência.

Ali levantou-se contra o recrutamento das minorias para lutar uma guerra com a qual não concordava, ao recusar o alistamento obrigatório. E o fez a duras penas, sendo banido dos ringues, o que tirou três anos do auge do maior de todos os tempos, além do confisco de seus cinturões mundiais e passaporte. Virou um pária nacional, para os dois lados do espectro. Democratas e, obviamente, Republicanos.

As falas de Ali ecoavam em meio a protestos, nas mãos do movimento negro

Ali afirmou, em frente ao juiz, de forma destemida: “por que eu deveria botar um uniforme e viajar 10 mil milhas para despejar bombas e balas em gente marrom no Vietnã, enquanto negros de Louisville são tratados como cachorros”? A resposta não foi outra que não a mais rigorosa possível. Enquanto defendia seu povo, mil civis vietnamitas morriam por semana, 100 americanos eram marcados como “casualidades” na Ásia e 2 bilhões eram gastos mensalmente na guerra. Em reação, o Congresso votava de forma amplaente majoritária para aumentar o período de recrutamento para mais quatro anos e criminalizava qualquer desrespeito à bandeira (como tentam fazer hoje no Brasil).

“Fui avisado que esse meu posicionamento me faria perder milhões de dólares, mas eu repito: O verdadeiro inimigo do meu povo está aqui”.

Em época de lutas globais contra o racismo, ninguém se sacrificou mais pelo seu povo que o maior atleta da história. Relembrar sua grandeza inspiradora nunca foi tão necessário. Perdeu tudo, mas usou sua relevância como campeão mundial e olímpico pra defender minorias, com uma coragem tão grande quanto enfrentar um gigante como George Foreman no ringue. Fez milhões que até então sequer haviam ouvido falar da Guerra do Vietnã e toda essa questão racial envolvendo ela, começaram a pensar e discutir a respeito. Reverberou por toda sociedade. E o mundo protestou em frente às embaixadas americanas.

Ao vermos atos violentos nas manifestações Black Lives Matter, lembremos o discurso de MLK sobre as revoltas do verão de 1967: é deplorável pretos cometerem crimes, mas são crimes derivados, criados pelo crime maior da sociedade branca, que desrespeita a lei, incentiva o abuso policial e a desigualdade no mercado de trabalho, na educação e nos serviços públicos.

Por Elísio Felton Getulino

Pseudônimo de mais um livre pensador, que gosta de estudar bastante sobre os temas antes de opinar a respeito. Multitarefas, interessado em todos os assuntos. Preza sempre pela razão, pelo conhecimento e pela opinião responsável. Overthinker como meio de vida, curiosidade como ideário.

Uma resposta em “O histórico verão americano de 1967: como Ali uniu Direitos Civis (MLK), revoltas sociais e hippies contra a Guerra e a favor do movimento negro”

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